quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Um Domingo Paulo Mendes Campos

Um domingo
Paulo Mendes Campos

   Diante da Lagoa Rodrigo de Freitas, eu nada tinha a fazer, nem a pensar; nem a sofrer: Reconhecia as coisas. A cor da água que parece olho baço, a cor da relva, a cor do eucalipto, a cor do firmamento, que era uma cor de líquido azul. Estava sentado com os olhos abertos, num banco de pedra.
    É bom que um homem, vez por outra, deixe o litoral misterioso e grande, querendo contemplar uma lagoa. O mar, este é terrível e resiste à nossa sede com seu sal profundo. Sim, são belas as palavras do mar: hipocampo, sargaço, calmaria. Oceanus. No entanto, uma lagoa, muda e fechada, compreende as nossas pequeninas desventuras, o efêmero que nos fere. Nenhum poeta seria tonto a tal ponto de escrever ao lago uma epopeia, uma saga. Nele podemos esquecer apenas os nossos naufrágios.
    O domingo se aquietara, quando passou zunindo um automóvel vermelho. O ar continha tubos translúcidos e dentro deles revoavam urubus. São as aves mais feias do céu, mas têm um belo voo alçado e tranquilo.
    Um pequeno barco a vela seguia o caminho invisível do vento. Depois, surgiram outros barcos, todos brancos e silenciosos. Acrescento que nada mais bonito existe do que um barco a vela. E havia também as casas dos pobres do outro lado, construções admiráveis no ar.
    O sol foi acabando. Levantei-me do banco e fui embora. Pensando: há domingos que cheiram a claustros brunidos pelo esforço dos noviços. Aquele, entretanto, tinha um perfume de outono.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A CRUZ
Carlos Drummond de Andrade
Quase todos carregamos a nossa cruz; alguns, além da própria, carregam a cruz dos outros. Carregar duas ou três cruzes não é empresa superior às forças do homem. Veem-se ombros frágeis, quase de vidro, suportando enormes madeiros. Parece que há mesmo um certo prazer nisso e orgulho. O ar de sombria felicidade com que o homem costuma gemer, num encontro de rua: “Pois é isso, lá vou eu carregando a minha cruz.” Olha-se para ele, não transporta coisa nenhuma, ou simplesmente segura entre dois dedos um pacote minúsculo, leve e até gracioso presente para a amada. Entretanto, ele garante que sim, é até uma cruz bem pesada, não há cruzes leves. Temos que acreditar em sua boa fé, como, aliás, na de todos os presidentes, ministros, governadores e prefeitos, que, infalível e confessadamente, portam cruzes, e cruzes que eles disputaram, cruzes que queriam esquivar-se-lhes, mas que eles perseguiram tenazmente até alcançá-las e botá-las ao ombro. O extraordinário, mesmo, o raro, o inconcebível é não carregar cruz nenhuma.
Vejam esse homem: É cearense. Vale dizer que nasceu com a cruz ao lado, não precisou requerê-la. Mudou-se de sua terra, e isso significa reforçar o peso da cruz, como fazem exilados. Escolheu uma cidade de São Paulo: Itabira. Fez-se comerciante. A cruz pesou-lhe menos. Há, é certo, os impostos, os fregueses importunais, competição, porém não resta dúvida que sua cruz se tornou mais confortável. Era uma cruz urbana, matriculada na Junta Comercial, sem seca nem mandacaru, enfim, uma cruz como tantas que carregamos sem perceber. Não ficou, porém, satisfeito. E ei-lo que manda fabricar outra cruz, ampla e bem vistosa, e te solve literalmente carrega-la, não apenas de sua casa à igreja de Itabira, mas até São Paulo; até o Rio; até o Vaticano.
Esse homem vai a Roma de cruz às costas. Já recebeu as bênçãos do vigário e será alvo de manifestações nas cidades por onde for passando, porque vai a pé, à boa maneira dos peregrinos, senão à Itália, pelo menos à Guanabara. Aqui tomará o navio, mas, a cruz será sua companheira a bordo, e com ela se apresentará ao Papa.
Cruz de alumínio, direis vós que lestes o telegrama de São Paulo. Pesando três quilos, e não três arrobas. Sim, não é de cabiúna ou de ferro, mas é uma cruz pública, real, escandalosa. Cruz de protesto contra as explorações nucleares. O cearense assumiu esse pecado do mundo e procura resgatá-lo deixando seus negócios, sua pacatez itatibana, para afrontar estirões pedestres, fadigas, incompreensões, homenagens, fotógrafas, caminhões, chuva, calor, vistorias, múltiplas e menores cruzes suplementares. A culpa dos grandes pesa muito mais de mil vezes três quilos, e não é de alumínio, é de lamentos infernais, da ferocidade à velhacaria, mas este cearense a resume numa peça maneira, de leve metal, e com isto pode suportar todo o peso da iniquidade. É um louco, um exibicionista, um fanático, um apóstolo, um mistificador, um provocador, um propagandista de artigos de alumínio? É um homem e expõe a seu modo a miséria de nosso tempo. 

                                                           In “Quadrante 2”