A CRUZ
Carlos Drummond de Andrade
Quase todos carregamos a nossa cruz;
alguns, além da própria, carregam a cruz dos outros. Carregar duas ou três
cruzes não é empresa superior às forças do homem. Veem-se ombros frágeis, quase
de vidro, suportando enormes madeiros. Parece que há mesmo um certo prazer
nisso e orgulho. O ar de sombria felicidade com que o homem costuma gemer, num
encontro de rua: “Pois é isso, lá vou eu carregando a minha cruz.” Olha-se para
ele, não transporta coisa nenhuma, ou simplesmente segura entre dois dedos um pacote
minúsculo, leve e até gracioso presente para a amada. Entretanto, ele garante
que sim, é até uma cruz bem pesada, não há cruzes leves. Temos que acreditar em
sua boa fé, como, aliás, na de todos os presidentes, ministros, governadores e
prefeitos, que, infalível e confessadamente, portam cruzes, e cruzes que eles
disputaram, cruzes que queriam esquivar-se-lhes, mas que eles perseguiram
tenazmente até alcançá-las e botá-las ao ombro. O extraordinário, mesmo, o
raro, o inconcebível é não carregar cruz nenhuma.
Vejam esse homem: É cearense. Vale
dizer que nasceu com a cruz ao lado, não precisou requerê-la. Mudou-se de sua
terra, e isso significa reforçar o peso da cruz, como fazem exilados. Escolheu uma
cidade de São Paulo: Itabira. Fez-se comerciante. A cruz pesou-lhe menos. Há, é
certo, os impostos, os fregueses importunais, competição, porém não resta
dúvida que sua cruz se tornou mais confortável. Era uma cruz urbana,
matriculada na Junta Comercial, sem seca nem mandacaru, enfim, uma cruz como
tantas que carregamos sem perceber. Não ficou, porém, satisfeito. E ei-lo que
manda fabricar outra cruz, ampla e bem vistosa, e te solve literalmente carrega-la,
não apenas de sua casa à igreja de Itabira, mas até São Paulo; até o Rio; até o
Vaticano.
Esse homem vai a Roma de cruz às
costas. Já recebeu as bênçãos do vigário e será alvo de manifestações nas
cidades por onde for passando, porque vai a pé, à boa maneira dos peregrinos,
senão à Itália, pelo menos à Guanabara. Aqui tomará o navio, mas, a cruz será
sua companheira a bordo, e com ela se apresentará ao Papa.
Cruz de alumínio, direis vós que
lestes o telegrama de São Paulo. Pesando três quilos, e não três arrobas. Sim,
não é de cabiúna ou de ferro, mas é uma cruz pública, real, escandalosa. Cruz
de protesto contra as explorações nucleares. O cearense assumiu esse pecado do
mundo e procura resgatá-lo deixando seus negócios, sua pacatez itatibana, para
afrontar estirões pedestres, fadigas, incompreensões, homenagens, fotógrafas,
caminhões, chuva, calor, vistorias, múltiplas e menores cruzes suplementares. A
culpa dos grandes pesa muito mais de mil vezes três quilos, e não é de
alumínio, é de lamentos infernais, da ferocidade à velhacaria, mas este
cearense a resume numa peça maneira, de leve metal, e com isto pode suportar
todo o peso da iniquidade. É um louco, um exibicionista, um fanático, um
apóstolo, um mistificador, um provocador, um propagandista de artigos de
alumínio? É um homem e expõe a seu modo a miséria de nosso tempo.
In
“Quadrante 2”